Futuros de Presente
Um conto meio "Stephen King" (não intencional) experimentando uma narrativa curta com diversos personagens
Já era um pouco tarde quando eu realmente percebi que César podia prever o futuro. Ele não usava bola de cristal, cartas, nem astrologia. À primeira vista, ele só era um cara estranho.
Fomos amigos de infância e ele era um jovem quieto, de poucas palavras, mas sempre muito assertivo quando as proferia. Nossas mães eram amigas, então naturalmente fui responsável, um pouco a contragosto, por inseri-lo na minha turma de amigos mais próximos da escola, apesar da sua estranheza. Com o passar dos anos, todos fomos nos acostumando com o seu jeito diferente. Passou a ser aceito, com seus raros papos sobre energias, linha da vida, destino e livre arbítrio. Mas era um bom amigo para todos nós.
Éramos um pequeno grupo muito unido de pessoas totalmente diferentes, que por algum motivo se aproximou e criou uma longa relação de amizade. A gente gostava de se chamar “Clube dos Seis” em referência a um filme antigo. Éramos um clichê ambulante: Juliana era a mais vaidosa e também a mais inteligente. Marcelo, acima do peso, sempre mau humorado, mas com um coração gigante. Já eu era o cara que gostava de esportes e, confesso, um pouco arrogante. Jonas, nosso amigo mais pacífico, que desde muito cedo já sabia que sentia atração pelo mesmo sexo e isso nunca foi um problema - nem para ele, nem para nós. Marta, a garota mais descolada e rebelde da escola, que não estava nem aí para o que os outros pensavam, mas que tinha um carinho quase maternal por, enfim, César, o estranho.
Algo muito bizarro a respeito de César, e que se tornou uma piada entre o grupo, era o fato de que ele sempre presenteava os amigos com coisas inúteis. Às vezes os presentes vinham sem motivo algum e nunca combinavam em nada com os presenteados. Nos anos de escola, ganhei tantas coisas dele que nunca dei muita bola. Normalmente jogava fora, vendia ou doava para alguém. Os outros, exceto Marta, geralmente também faziam a mesma coisa.
Foram bons anos aqueles. Mas, como sempre acontece, nossa turma acabou se separando após o ensino médio. Na faculdade mantivemos contato daquele jeito mais distante, por um grupo de aplicativo de conversa, onde eventualmente alguém perguntava "Como estão todos? Mandem notícias!". Após formados, um foi morar na capital, outro no estrangeiro e poucos ficaram no interior. Por muitos anos, falávamos em fazer um encontro para matar a saudade, o que obviamente acabava nunca acontecendo.
César acompanhava as conversas mas quase não se pronunciava. Sabíamos bem pouco sobre ele. Naquele fatídico ano, enviou presentes a todos. Durante vários meses, o pouco que se falava no chat eram nossas mensagens de agradecimento pelos recebidos. Presenteou um binóculo a Juliana, que virou advogada e a bem-sucedida da turma. Presenteou Marcelo, o programador mais sedentário, com um kit de cordas, mosquetões e cintos. A mim, mandou uma panela de pressão elétrica, sendo que nunca fui muito habilidoso na cozinha. Jonas recebeu um kit de defesa pessoal, com spray de pimenta e um par de algemas - o que gerou piadas sobre o que ele andava fazendo entre quatro paredes.
Marta não teve a chance de agradecer pelo seu presente. Antes disso, minha mãe ainda amiga da mãe de César, me comunicou que nosso amigo mais estranho havia falecido. Suicídio. Nenhum bilhete. A notícia foi um choque. Avisei a todos no grupo. Queria tanto que fosse mentira mas, dessa vez, o número de César foi o único a não visualizar a mensagem. Todos nos sentimos culpados por nunca termos insistido mais em uma reaproximação. Tivemos a sensação de que devíamos ter feito algo, buscado saber mais notícias dele. Parecia que o havíamos abandonado. Com esse sentimento, prometemos finalmente nos vermos no funeral.
Apesar da triste circunstância, foi um reencontro, de certa forma, mágico. Como só algo sobre César poderia ser. Cada um que ia chegando, entre lágrimas e risos, trazia consigo alguma história sobre ele, alguma lembrança para celebrar as suas estranhezas e particularidades. Marta foi a última a chegar. Vinha de muletas, vestia uma bota ortopédica no pé esquerdo e o rosto com algumas escoriações recentes. Todos ficamos surpresos com a cena e o primeiro impulso foi saber se ela estava bem e o que havia acontecido.
Marta estava tão nervosa que mal conseguia narrar os acontecimentos das últimas horas. Confidenciou que havia exagerado na bebida e remédios quando recebeu a notícia, mas precisava rumar ao interior, para o enterro. Decidida a pegar a estrada, um acontecimento estranho antes de sair. Reconheceu, vindo do seu quarto, a música de uma caixa de jóias que César havia lhe dado anos atrás. Ela sempre guardou tudo o que ganhou do amigo, até mesmo esta antiguidade que nunca funcionou muito bem e, vez por outra, tocava sozinha nos momentos mais inoportunos. Seguindo o som, demorou alguns minutos até encontrar o velho presente no meio da habitual bagunça de seu dormitório. Antes de desligá-la, ficou ainda alguns segundos, chorando até a música acabar. “Você tem certeza, Marta? Será que não foi efeito dos remédios e da bebida?” perguntei. “Cala essa boca! Só podia ser um sinal dele!” ela retrucou.
Na viagem, dormiu ao volante e sofreu um acidente que, segundo ela, teria sido fatal se ela tivesse saído de casa alguns minutos antes. Ela acordou com a cabeça no airbag, a perna presa entre as ferragens. Saindo do hospital, foi recomendada a comprar muletas e utilizar uma bota ortopédica. “Vocês não entendem!” ela dizia. Então, seu nervosismo começou a fazer sentido: “Foram exatamente os últimos presentes que eu ganhei do César e eu levava no meu porta-malas!”. Nós quatro ouvimos a história, com expressões incrédulas. “Vocês não acreditam. Eu sabia! Vocês sempre me acharam a louca da turma!” ela gritava com lágrimas escorrendo pelo rosto. “Mas César sabia! No 8º ano, ganhei dele um pé de cabra. Vocês lembram que meu pai, aquele bêbado filho da puta, me trancou em casa por dias? Como acham que eu consegui sair?” Ela prosseguiu. “no 1º ano do médio, ganhei dele roupas térmicas para o frio intenso em pleno verão. Meses depois, tive que fugir, na noite mais fria do ano, pra casa da minha tia na serra. No fim do 3º ano ganhei um jogo de máscaras N95 e no ano seguinte vocês sabem muito bem o que veio no ano seguinte. Sem falar na caixa de música! Vocês querem que eu continue?”.
Ficamos todos reflexivos. Pareciam apenas coincidências, mas cada um, à sua maneira, compartilhou alguma história parecida.
Meses antes, Juliana, do alto do prédio onde trabalhava, já disposta a colocar seu presente no lixo, resolveu dar uma última olhada com o binóculo e descobriu à distância, mas com uma nitidez certeira, que o marido a traía. Após a separação, o ex foi denunciado por assédio e violência sexual a dezenas de mulheres. A minha panela de pressão antiga explodiu na cara do meu vizinho, a quem doei após ganhar meu presente. Ele teve sérias queimaduras no rosto. Jonas evitou o pior em um “encontro” com um homem homofóbico que conheceu por aplicativo, graças ao seu kit. Marcelo passou a praticar exercícios regularmente e escapou com vida de um incêndio no seu prédio, utilizando-se de um rapel ao sair pela janela. Coincidência ou não, ficamos espantados.
Todos nós havíamos, de alguma forma, evitado situações difíceis naquele ano, graças a César. Apenas Marta foi capaz de perceber e ligar os pontos, porque nunca negou um presente. Passamos o resto daquela tarde pensando em tudo o que ganhamos dele e que não demos a menor atenção.
Nos dias que se seguiram, continuamos via chat a juntar as peças desse quebra-cabeça de vários anos e, todas que conseguíamos nos lembrar, sem exceção, tinham algum encaixe com acontecimentos posteriores. Ora ríamos, ora nos culpávamos. Era tudo tão inexplicável e fantástico. Quantas coisas da vida poderíamos ter evitado, se entendêssemos as mensagens de nosso amigo, o estranho.